segunda-feira, 6 de abril de 2020

Vírus: vida e obra do mais intrigante dos seres


Publicado originalmente no site da revista SUPERINTERESSANTE

Vírus: vida e obra do mais intrigante dos seres

O coronavírus é apenas o herdeiro de uma tradição: do herpes à Covid-19, entenda como os vírus moldaram a vida na Terra e a história da civilização.

Texto: Bruno Vaiano | Reportagem: Bruno Carbinatto e Guilherme Eler | Ilustração: Otávio Silveira | Design: Carlos Hara 

O Tierra é um programa de computador com 80 linhas de código-fonte. É pouco: um app de celular pode alcançar 500 mil; a versão mais recente do Photoshop tem 4,5 milhões. Esse software minúsculo foi criado em 1990, no PC do biólogo Thomas Ray da Universidade de Delaware, nos EUA. A única função de Tierra é criar cópias de si mesmo. Essas cópias vão fazendo mais cópias, até a memória do computador ficar lotada.

Às vezes, durante a clonagem, um dos “filhotes” tem uma linha de código duplicada, alterada ou deletada aleatoriamente. A maior parte dessas mutações impede o Tierra afetado de continuar a se reproduzir. Mas algumas melhoram o desempenho, e ele passa a preencher o HD mais rápido. Isso é seleção natural. Nesse experimento distópico, os Tierras são uma vida artificial que evolui, no sentido darwiniano da coisa.

Alguns Tierras se tornam mais complexos e eficazes após algumas gerações. Outros, porém, ficam mais simples. Vão abandonando linhas de código, até não conseguirem mais se copiar sozinhos: as linhas que restam, por si só, não contêm todas as instruções necessárias para gerar um conjunto igual de linhas. A solução para esses Tierras preguiçosos é parasitar Tierras inocentes, pegando linhas emprestadas para se reproduzir. Assim, às custas dos outros, eles se multiplicam. O nome disso é vírus. De computador, nesse caso.

Há uns 3,5 bilhões de anos, algo parecido aconteceu na Terra. Nessa época, os primeiros seres vivos, bactérias rudimentares, se multiplicavam nos oceanos. Algumas se tornavam mais complexas: graças a uma mexidinha no DNA aqui, outra ali, ganhavam genes novos e, com eles, habilidades bioquímicas inéditas. Outras foram abandonando genes, até ficarem tão simples que começaram a sequestrar o maquinário de bactérias normais para se reproduzir. Essa é uma de várias hipóteses para a origem dos vírus: eles seriam ex-bactérias que se tornaram cada vez mais rudimentares.

O vírus que está desenhado na capa desta edição parece vindo da ficção científica, mas é das antigas. Se chama bacteriófago, ou seja: é um especialista em atacar bactérias (fagós é “comer” em grego). Não existe outro parasita tão letal na Terra, porque suas vítimas, até hoje, são as mais numerosas. O número de bactérias no oceano tem 28 zeros. Isso significa que, para cada estrela do Universo visível, há 10 milhões de bactérias na água. O número de vírus que ganham a vida se aproveitando dessas bactérias tem 31 zeros, de modo que o número de infecções virais que ocorrem no oceano por segundo tem 23 zeros. 40% do total de bactérias dos oceanos morrem por causa de vírus a cada 24 horas. Para uma bactéria, todo dia é dia de pandemia.

A vida, é claro, se tornou mais complexa que um duelo entre bactérias e vírus (ainda que eles continuem reinando absolutos sobre os ecossistemas da Terra). Ao longo de bilhões de anos de história, as bactérias uniram forças para formar seres multicelulares, como plantas, fungos e animais. Os vírus foram atrás, sempre evoluindo para se aproveitar da complexidade crescente. O que nos leva ao maior problema de saúde pública do século 21: o coronavírus Sars-CoV-2, causador da doença Covid-19, que, até o fechamento desta edição, havia causado 8,7 mil mortes. Nos próximos parágrafos, você lerá um dossiê sobre os vírus: o que eles são, do que são feitos, como invadem nossas células e como mudam nossas vidas desde que nossa espécie se entende por gente. Começando pelo básico:

(Otavio Silveira/Superinteressante)
  
Como funciona um vírus

Um ser humano é construído por, no mínimo, 20 mil proteínas diferentes (há quem fale em 92 mil). Existe a queratina dos seus cabelos; a actina e miosina, que contraem seus músculos; a amilase, que começa a digestão do açúcar ainda na sua boca; a insulina, que controla o acesso desse açúcar às suas células… A lista é longa. Do mesmo jeito que as 400 mil palavras do português são feitas com um alfabeto de apenas 26 letras, nossas 92 mil proteínas são combinações diferentes de 20 pequenas moléculas chamadas aminoácidos.

Durante a digestão, na acidez do estômago, as proteínas de outros animais e plantas são quebradas em aminoácidos. Como palavras desmontadas em uma sopa de letrinhas. Depois, células do corpo todo usam esses aminoácidos como matéria-prima para montar suas próprias proteínas. Mas elas precisam saber as sequências certas. Para tanto, usam um dicionário de proteínas. O nome desse dicionário é DNA. Quando uma célula precisa de uma proteína, uma molécula chamada RNA mensageiro vai até o núcleo, abre o DNA, anota a receita e leva a anotação a uma estrutura chamada ribossomo, que monta a proteína.

Todo vírus é feito essencialmente das mesmas coisas que você: uma cápsula oca de proteínas e gorduras no interior da qual há um pedaço curtinho de material genético – que contém as receitas. (Quando você usa álcool gel ou sabão, destrói a cápsula do mesmo jeito que desmancha gordura de hambúrguer nas suas mãos).

O problema é que, ao contrário de qualquer animal, planta ou bactéria, os vírus não fabricam suas proteínas por conta própria. Eles não têm a linha de montagem, o tal do ribossomo. O jeito é invadir um organismo – seja uma bactéria, seja um Homo sapiens – e sequestrar os ribossomos, fazendo com que eles fabriquem novas cápsulas virais em vez de algo útil para um humano, como queratina ou amilase. É por isso que os vírus só se reproduzem dentro de algum hospedeiro.

Para sequestrar ribossomos, primeiro é preciso penetrar em uma célula, que é protegida por uma membrana. Cada vírus dá um jeito diferente de atravessar a membrana, então vamos usar como exemplo a praga da vez: os coronavírus – que atendem pela sigla CoV. A pandemia de Covid-19 é só a obra mais recente dessa família. Além de outras epidemias respiratórias, como a Sars, de 2002, e a Mers, de 2012, os coronavírus foram (e são) responsáveis por resfriados comuns também – junto com 200 e tantos vírus de outros tipos. Das sete linhagens conhecidas de CoV, quatro são quase inofensivas. Só causam alguns espirros.

Corona, você já leu por aí, significa “coroa” em latim, porque o vírus tem a aparência de uma bola com uma coroa de espinhos. Esses espinhos, na verdade, não espetam. São só proteínas, que evoluíram para se encaixar como chaves nas fechaduras que ficam na membrana. Feito o encaixe, é só entrar.

Uma célula humana é algo realmente pequeno: você tem 37,2 trilhões delas, em geral tão minúsculas que no espaço de um milímetro cabem dez enfileiradas. Para entrar em uma célula, portanto, os vírus precisam ser cerca de cem vezes menores. Se um coronavírus particularmente gordo, com 160 nanômetros, fosse do tamanho de uma pessoa, a pessoa seria do tamanho da distância entre o Brasil e o Japão – 17 mil km.

A Covid-19 (sigla para coronavirus disease 2019) começa quando o novo vírus acessa o nariz, a boca ou os olhos – pegando carona nas suas mãos ou suspenso no ar em gotículas de saliva após um espirro bem dado. Ele se aloja em um cantinho estratégico, a parede por onde o muco escorre garganta abaixo. Os espinhos dele são ótimos em invadir as células dessa região. É na garganta que a maior parte dos casos de Covid-19 começa – e termina, com o vírus eliminado pelo sistema imunológico. Os sintomas, nesses casos, são leves: tosse seca para expulsar o invasor; febre baixa para matá-lo de calor (às vezes, nesses casos de eliminação rápida, rola uma dorzinha na cabeça ou na garganta).

Uma vez dentro da célula, o vírus começa a passar suas próprias fitas de RNA mensageiro pelos ribossomos. As organelas não percebem que a receita do invasor é uma cilada, e acabam gerando milhões de cópias das proteínas usadas para montar cápsulas de coronavírus. As células se tornam fábricas a serviço do inimigo.

No final, basta ao vírus colocar uma cópia do genoma dentro de cada uma dessas cápsulas e voilà: um novo exército está pronto. O vírus da Covid-19 não explode a célula para sair – como faz o ebola, por exemplo. Ele vence pela exaustão: a célula se dedica tanto a produzir as proteínas do corona que morre por não conseguir fabricar suas próprias proteínas.

20% dos casos de Covid-19 evoluem para um quadro mais severo, em que o vírus desce para os pulmões. É que o sistema imunológico não gosta nada disso. “Assim como em outras doenças causadas por vírus, os sintomas vêm mais da resposta do corpo a ele que da atuação do vírus em si”, explica Jean Pierre Peron, imunologista do Instituto de Ciências Biomédicas (ICB) da USP.

E a resposta vem pesada. Os vasos sanguíneos do pulmão se dilatam para que os glóbulos brancos cheguem mais rápido ao local da infecção. Isso causa dor e inchaço. O campo de batalha fica congestionado de destroços: células mortas no fogo cruzado se misturam às que já foram assassinadas pelo vírus. Mesmo se o sistema imunológico der conta de exterminar logo o exército de coronas, a gosma de células mortas que ficaram pode deixar lesões permanentes.

Já se os seus anticorpos não derem conta, e o corona seguir sua série de assassinatos, os alvéolos acabam entupidos. Aí complica de vez. Isso impede a troca de gases com o ambiente. Se não houver ventilação artificial, o paciente morre de insuficiência respiratória.

A classificação dos vírus

O vírus não faz isso porque é mau. Na verdade, ele não pode ser mau ou bom, pois sequer é considerado vivo pela maioria dos biólogos. Vírus não têm metabolismo, não comem, respiram ou excretam. Não se reproduzem sozinhos – precisam dos hospedeiros –, e não se locomovem por conta própria. A única razão da existência de um vírus é fazer mais de si mesmo. Ele é um pedacinho de informação genética que se replica. A razão de sua existência, diga-se, é a replicação. Os vírus se replicam simplesmente porque os que não se replicavam bem deixaram de existir.

É difícil traçar o parentesco entre os mais de 5 mil vírus conhecidos – sequer sabemos se eles têm todos a mesma origem. Embora alguns possam ter regredido de bactérias, como mencionado no início do texto, outros talvez descendam de pedacinhos de DNA que circulavam livremente entre bactérias há bilhões de anos. O biólogo David Baltimore criou o sistema de classificação mais aceito, que divide os vírus em sete tipos de acordo com as moléculas que cada um usa para armazenar sua informação genética [veja o gráfico no final desta seção, clique nele para ampliar].

Os vírus, ao contrário de nós, não dependem necessariamente do DNA para guardar seu genoma. Eles podem usar o próprio RNA, que normalmente é só um burro de carga, para aquela missão mais nobre de guardar as receitas de proteína. Isso até facilita as coisas, pois permite sabotar o ribossomo direto, sem ter que transcrever DNA em RNA antes.

O RNA é uma molécula bem frágil (a seleção natural não optou pelo DNA à toa: se você vai salvar todas as informações sobre você mesmo em um pen drive, é melhor usar um bom pen drive). “Frágil”, nesse caso, significa sofrer mutações com mais frequência.

Esse defeito, porém, também é um trunfo: mutações frequentes ajudam o vírus a se adaptar muito mais rápido, e superar as novidades que as nossas células criam na corrida armamentista contra invasores. Não é figura de linguagem: todos os anos lançamos uma nova vacina contra a gripe, e todos os anos uma nova linhagem do vírus da gripe aprende a superá-la. E essa Guerra Fria biológica nos acompanha há muito, muito tempo.

Errata: no gráfico abaixo, há uma troca entre as explicações dos tipos 4 e 5. O RNA mensageiro é uma fita positiva. Portanto, o vírus tipo 4, de fita positiva, é o que gera o RNA mensageiro direto. Já o tipo 5, de fita negativa, precisa primeiro convertê-la em positiva (isto é, “revelar a foto”). Agradecemos a bióloga Talita Dellariva, especialista em herpesvírus, pela correção.

(Otavio Silveira/Superinteressante)

Os vírus de estimação

Humano bom não é humano morto. Pelo menos, não na opinião do vírus do herpes – talvez o mais comum e discreto dos que parasitam nossa espécie. Ele vem em duas versões. A primeira, denominada HSV-1, é encontrada em 67% da população mundial e se manifesta de forma branda: durante as crises, que duram no máximo dez dias, cachos de bolinhas com líquido brotam nos lábios do infectado. Não há cura; mas também não há preocupação: elas vão embora sozinhas, para talvez voltar meses ou anos depois. O HSV-2, por sua vez, geralmente ataca os genitais, atinge uma em cada seis pessoas, e tem sintomas mais incômodos.

Ninguém morre de herpes, e essa é a estratégia do vírus. Nas palavras de James Lovelock, “Um vírus ineficaz mata seu hospedeiro, um vírus eficiente fica com ele”. O HSV, com suas discretas perebas, pega carona em beijos e ousadias por aí, garantindo o contágio. Ele quer seu hospedeiro feliz e transante, e não internado no hospital.

A explicação do comportamento moderado do herpes encontra-se em sua história: esse é um vírus antigo, de uma época em que não havia uma enorme população de Homo sapiens – só alguns grupos de nômades caçadores aqui e ali. Era essencial cuidar de seu humano de estimação, pois ele dificilmente encontraria outro.


Herpes e Darwin: O herpes é tão antigo que já estava em nossa linhagem há 8 milhões de anos – quando o ramo que daria origem à nossa espécie se separou dos chimpanzés. (Otavio Silveira/Superinteressante)

É importante especificar o quão antigo é o HSV-1: o ancestral comum a humanos e chimpanzés – isto é, o primata que deu origem às duas espécies – já tinha herpes há 8 milhões de anos. Quando os descendentes desse ancestral comum se dividiram entre humanos e chimpanzés, dois ramos do herpes se formaram: um especialista em nós, outro, claro, em chimpanzés.

Uma vez estabelecida a linhagem humana, houve uma segunda diferenciação: conforme os hominídeos começaram a caminhar eretos, apoiados em só duas patas, seus genitais pararam de entrar em contato com a boca dos outros o tempo todo (às vezes entram, claro, mas não andamos por aí de quatro averiguando o traseiro alheio no escritório). Isso criou uma barreira geográfica entre a boca e a genitália, e assim surgiram mais duas ramificações do vírus de herpes: os tipos 1 e 2 de hoje.

Os biólogos têm os genomas desses vírus sequenciados, e sabem aproximadamente a que taxa eles sofrem mutações. Dessa forma, é possível calcular há quanto tempo nós nos separamos dos chimpanzés e nos tornamos bípedes. Basta contar quantas diferenças (mutações) há entre os genomas dos dois herpes: quanto maior a divergência, mais tempo se passou. Esse cálculo dá 8 milhões de anos. O incrível é que, quando a mesmíssima conta é feita usando diretamente o DNA de humanos e chimpanzés, o resultado é idêntico.

A nossa história é a história de nossos parasitas. Mais que isso: às vezes, nossa história se mistura com a deles. Os retrovírus, como o HIV, usam um método especialmente engenhoso para controlar a célula invadida: em vez de passar fitas de RNA nos ribossomos, eles instalam pedaços de DNA no genoma do hospedeiro. Sim: o bichinho faz com que as receitas de proteína se tornem parte de você.

Se um retrovírus infecta as células germinativas de um ser humano – isto é, as células que dão origem a óvulos e espermatozoides –, então ele tem uma chance razoável de alterar para sempre o DNA dos filhos desse humano. Afinal, se o óvulo fecundado que dará origem ao feto estiver carregando um gene do vírus, todas as células do bebê terão esse gene ao final da gestação.

Parece uma possibilidade remota, mas é comum: algo entre 5% e 8% do genoma humano consiste em pedaços de retrovírus que se fundiram com nossos antepassados ao longo da evolução. Alguns desses “genes virais”, inclusive, foram reaproveitados em funções úteis: uma proteína que servia de cola para um vírus desconhecido aderir à parede das células é usada, atualmente, para aumentar a aderência entre as células que formam a placenta. Ou seja: ela torna a gestação de bebês mais eficiente.

Os vírus e a história

Essa é a frase mais repetida da história da SUPER: “Há cerca de 12 mil anos, o Homo sapiens passou a praticar a agricultura e a pecuária”. Mas vamos repeti-la, pois é essencial para esta história também. Essa produção de alimento em larga escala permitiu a formação de grandes grupamentos sedentários – os primeiros vilarejos densamente povoados. E isso, por sua vez, permitiu a evolução de vírus extraletais: com uma ampla oferta de humanos, dá para matar o seu e pular direto para o próximo.

Outro problema é a disseminação de zoonoses: doenças que originalmente atacavam animais, mas depois sofreram mutações que as permitem infectar o sapiens. De 1.415 patógenos conhecidos, 61% têm origem em outras espécies. Tais micróbios deixam 2,5 bilhões de pessoas doentes e matam 2,7 milhões todos os anos. Estima-se que uma nova doença animal capaz de infectar pessoas é descoberta a cada quatro meses.

O novo coronavírus é uma dessas doenças. No Sudeste Asiático, os wet markets (ao pé da letra, “mercados úmidos”) vendem a carne de animais silvestres exóticos que são mantidos em jaulas apertadas e então mortos no balcão. As condições sanitárias fazem um boteco brasileiro parecer piso de hospital. Já está confirmado que o primeiro foco de disseminação do coronavírus foi o mercado de Huanan, em Wuhan.

Muitos animais vendidos nesses mercados, antes da captura, contraíram doenças em seu habitat, geralmente após serem mordidos por morcegos ou entrarem em contato com o cocô desses mamíferos (só a minoria dos morcegos, três espécies de mil, bebe sangue). Os pequenos Dráculas são vetores exemplares: carregam no mínimo 200 vírus, 60 dos quais têm potencial para contaminar humanos.

No ambiente estressante do mercado, com o facão no pescoço, a imunidade dos animais capturados cai e as doenças que eles pegaram de morcegos se manifestam. Daí até um açougueiro com as mãos sujas de sangue coçar o olho, é um pulinho. Diante de uma oferta tão pujante de vírus, frequentemente um deles tem as mutações necessárias para infectar a nossa espécie também.


Presente de grego: Animais domésticos, como os porcos, transmitem novos vírus da gripe, enquanto morcegos são bombas: carregam mais de 200 tipos de vírus, 60 dos quais podem infectar humanos. Eles chegam a nós por intermédio de bichos exóticos, como pangolins. (Otavio Silveira/Superinteressante)

Quando a população doente é grande, o vírus se beneficia da violência com que ataca humanos. Vômito, diarreia e espirros são um Uber para os patógenos: ferramentas por meio das quais eles pulam de uma pessoa para outra. É por isso que eles se especializaram nesses sintomas.

O acesso prioritário a vírus e bactérias letais, de início, foi péssimo para quem deixou os hábitos nômades e passou a viver em vilarejos. A qualidade de vida nas primeiras comunidades sedentárias era inferior à dos caçadores-coletores. Os fazendeiros ficavam doentes com mais frequência e tinham a alimentação restrita aos pouquíssimos vegetais e bichos que já haviam sido domesticados. Em longo prazo, porém, tais populações se tornaram imunes aos germes barra pesada que adquiriam – e passaram a usá-los como armas involuntárias (ou, às vezes, deliberadas) para dizimar oponentes.

Foi o que aconteceu durante a colonização da América Latina pelos espanhóis: as civilizações Asteca e Inca foram dizimadas pela varíola trazida da Europa – e seus sistemas políticos foram desestabilizados por disputas de poder quando os governantes morreram. Com o tempo, esses povos desenvolveram imunidade. Os corpos dos sobreviventes, depois de uma primeira infecção, aprenderam a matar o vírus da varíola Mas era tarde: já estavam completamente dominados pelos europeus.


Colonização biológica: povos que adquirem vírus letais de seus animais domésticos podem usá-los para infectar inimigos. Foi o que aconteceu na América em 1500 – quando os nativos foram massacrados pelo sarampo dos europeus. (Otavio Silveira/Superinteressante)

É claro que, para alguns vírus, um round de imunização não basta. Vírus como o da gripe, por serem feitos de RNA, passam por mutações tão rápido que aprendem a burlar nosso sistema imunológico, como já dissemos aqui. E, se essa mutação aumentar a letalidade de uma gripe, a coisa vira uma bomba atômica. A gripe mais cruel da história se deu em 1918, no final da 1a Guerra Mundial, quando uma estirpe bombada do influenza H1N1 (sim, o mesmo que causou a epidemia de 2011) matou algo entre 20 e 50 milhões de pessoas. E ela tem algumas lições para nos ensinar.

Como as epidemias se espalham

Dois números são especialmente importantes para entender epidemias violentas. Um é a letalidade, isto é: a porcentagem de pessoas infectadas que morrem. Outro é o R0 (pronuncia-se “érre zero”), que representa a facilidade com que o vírus se espalha. Por exemplo: se o R0 de uma doença é 2, cada doente passa o vírus para, em média, outras duas pessoas.

O influenza da gripe espanhola não era tão letal assim: em média, “só” 2,5% dos doentes morriam. O problema é que ele infectou 500 milhões de pessoas (27% da população mundial da época, de 1,8 bilhão de pessoas). No fim, no mínimo 20 milhões morreram.

O valor R0 da gripe espanhola ficava entre 1,2 e 3 em ambientes abertos e 2,1 e 7,5 em ambientes confinados. A margem de erro é grande porque é impossível determinar, só com documentação de papel, as características de uma epidemia que ocorreu um século atrás.

Mas o dado é claro: na pior das hipóteses, um infectado trancado em um navio ou hospital era capaz de deixar outras sete pessoas doentes. E era fácil cumprir tais condições. O fim da 1a Guerra gerou um grau inédito de circulação e confinamento de pessoas. Os militares sobreviventes, desnutridos e fumantes, voltavam para casa em navios e trens lotados, com o sistema imunológico enfraquecido. A mortalidade masculina foi tão alta que a força de trabalho feminina na indústria americana aumentou 25% por simples falta de braço – dando um gás aos movimentos pelos direitos das mulheres.


No gráfico acima, veja as epidemias mais famosas da história em ordem cronológica – e quanto cada uma matou. A Covid-19, no pior dos cenários, pode ser tão grave quanto a gripe espanhola. Mas nada que se compare à destruição causada pela varíola.

Conforme uma doença avança, mais pessoas se tornam imunes a ela. Chega uma hora em que um infectado não consegue passar seu vírus para frente, porque todas as pessoas com que ela entra em contato já foram expostas à doença e estão imunes. Isso impede que o vírus pule de corpo em corpo até alcançar locais onde a infecção ainda não havia chegado. Ele para de colonizar novos territórios. E deixa de existir.

Essa é a progressão natural de toda epidemia, e o motivo pelo qual elas sempre terminam. Essa é também a lógica por trás da chamada “imunização de rebanho”, propiciada pelas vacinas: o sarampo, que possui R0 entre 12 e 18, se espalha em um ritmo assustador. Para que a vacinação seja eficaz, é importante derrubar o R0 para 3,5, o que significa manter no mínimo oito em cada dez cidadãos imunizados. Quem não vacina os filhos põe os filhos dos outros em risco.

Agora, vamos ao vírus da vez. A mortalidade da Covid-19, segundo a última atualização divulgada pela OMS antes do fechamento desta edição, é de 3,7% (com variações etárias, é claro: 0,2% para quem tem de 10 a 39 anos, 15% para quem tem mais de 80). Já seu R0 é 2,2. Mas há um problema: esses números consideram apenas os pacientes que foram ao hospital com sintomas preocupantes. Como 80% dos casos de Covid-19 apresentam sintomas leves (ou inexistentes), e não há testes para todo mundo, a maioria dos infectados fica de fora da contagem. E aí o dado da OMS fica exagerado.

Um jeito eficaz de aumentar a precisão dessas cifras é testar absolutamente todas as pessoas de um local em que todo mundo tenha sido exposto ao vírus. É uma exigência exótica para um experimento – nenhum cientista trancaria milhares de cobaias humanas num galpão para depois infectá-las de propósito.

Mas, por azar, algo parecido aconteceu: o corona se espalhou no navio de cruzeiro Diamond Princess, com 3.711 ocupantes entre passageiros e tripulantes, que encontra-se ancorado no porto de Yokohama, no Japão, em quarentena. A embarcação virou um laboratório involuntário com cobaias humanas. Até a data de fechamento desta edição, eram 707 infectados e 7 vítimas fatais, o que dá uma mortalidade de aproximadamente 1%. Não por coincidência, é o mesmo número fornecido pela Coreia do Sul, onde testes estão sendo realizados em massa. O vírus, portanto, talvez seja menos letal do que se pensava.

Mas isso não é consolo caso ele se espalhe demais: o infectologista chinês Gabriel Leung, especialista em saúde pública da Universidade de Hong Kong, liderou os esforços de combate às Sars em 2003 (que teve um desfecho comparativamente leve, com 8 mil infectados e 800 mortos). Ele conhece bem os coronavírus, e calcula que até 60% da população mundial pode acabar contaminada. Se isso acontecer e o índice de fatalidades for mesmo de 1%, o vírus ainda matará 45 milhões de pessoas. Um número bem próximo dos 50 milhões da gripe espanhola.

Por isso mesmo é importante ficar em casa. O principal objetivo do isolamento é fazer com que as pessoas não peguem a Covid-19 todas ao mesmo tempo, sobrecarregando os sistemas de saúde – uma ideia representada no gráfico aqui embaixo e, felizmente, reproduzida em todos os lugares nas últimas semanas. Caso tal sobrecarga aconteça, a taxa pode ser bem maior que 1%. E o total de mortos deixaria a gripe espanhola para trás.


O gráfico acima resume o objetivo das quarentenas: se as pessoas não ficarem doentes todas ao mesmo tempo, os hospitais talvez deem conta de atender todo mundo.

Pessoas em estado crítico podem ser salvas por máquinas de ventilação mecânica, que compensam a insuficiência respiratória e dão tempo extra para que o sistema imunológico lute contra o vírus – até vencê-lo. Porém, se não há equipamento para todos, é preciso escolher quem vive. Esse é o problema na Itália. Como as quarentenas demoraram para começar, a Covid-19 se espalhou rápido e a mortalidade bateu avassaladores 8,3% em meados de março. No dia 16 de março, o país anunciou que pessoas acima de 80 anos não terão mais direito a respiradores em caso de superlotação – o propósito é guardá-los para os que tenham mais chances de sobreviver à infecção.

Para piorar, um estudo coordenado pela Universidade Columbia, em Nova York, e publicado no periódico Science em 16 de março, estimou que dois terços das infecções de coronavírus são culpa de assintomáticos: pessoas que contraíram o vírus, mas não foram afetadas, saem para trabalhar ou estudar normalmente e acabam espalhando ele por aí. Esse, aliás, é um argumento a favor das máscaras: como nem todo mundo fará um teste para saber se está ou não infectado, posto que testes são um recurso caro e escasso, é melhor proteger de uma vez os outros do perigo que você mesmo pode representar.


Neste gráfico, o eixo vertical marca a porcentagem de infectados por uma doença que morrem, em média. O número também está entre parênteses ao lado do nome da doença. Já o eixo horizontal mostra o valor R0 (“érre zero”), isto é: o número de pessoas que são infectadas, em média, por cada indivíduo que tem o vírus.

Os dados do coronavírus ainda são incertos: a mortalidade com certeza é próxima de 1%, e o R0 provavelmente é maior que 2,2, que é o valor oficial atual.

Fontes: Organização Mundial da Saúde (OMS), Centro de Controle e Prevenção de Doenças dos EUA.

*A gripe aviária tem R0 = 0 porque é transmitida apenas de aves para humanos, e não entre pessoas.

As vacinas

Além das quarentenas generalizadas, a melhor maneira de combater uma pandemia viral é vacinar a população. Na ausência de bolas de cristal, porém, demora produzir uma vacina para uma doença até então desconhecida.

Pelo menos oito vacinas contra o novo coronavírus estão saindo a toque de caixa, a maioria em empresas privadas. Vacinas, assim como remédios, são submetidas a um processo regulatório severo que garante sua segurança e eficácia. Antes de chegar ao público, elas passam por testes pré-clínicos com animais e três fases de testes clínicos com voluntários humanos – se qualquer coisa der errado, o trabalho recomeça do zero.

Assim, há o risco de que nenhum dos concorrentes complete o trabalho a tempo (ainda que essa seja uma precaução importantíssima para evitar epidemias futuras). “Pode acontecer algo parecido com o caso do ebola”, diz Helder Nakaya, da Faculdade de Ciências Farmacêuticas da USP. “As pessoas correram para criar uma vacina, mas, quando os ensaios clínicos estavam na fase 3 [o teste final, com milhares de voluntários], já não havia mais uma epidemia para combater.”

Sabe-se que a Johnson & Johnson está estudando uma vacina que consiste em injetar o vírus inteiro em uma versão inativa, e a Clover Biopharmaceuticals, em parceria com a Universidade de Queensland, na Austrália, aposta em uma técnica que envolve exibir uma proteína do vírus ao sistema imunológico, de maneira que os glóbulos brancos salvem a impressão digital da ameaça. Essas são duas abordagens clássicas, usadas em vacinas desde o século 18.

Uma outra empresa, chamada Moderna Therapeutics, aposta em uma técnica mais inovadora (e já até pulou os testes preliminares em animais para vencer a concorrência, uma infração ética que incomodou os profissionais da saúde). A ideia deles é injetar pedacinhos de RNA mensageiro do vírus nas pessoas, simulando aquele momento do sequestro dos ribossomos. As células do vacinado, então, passariam a fabricar uma amostra de proteína viral inofensiva, que então seria identificada e devidamente arquivada pelo sistema imunológico. Quando o vírus real entrasse no corpo, encontraria todo um batalhão de linfócitos prontos para massacrá-lo.

Como é impossível prever quando a vacina estará disponível, a melhor arma contra o coronavírus ainda somos nós mesmos. “O que as autoridades brasileiras podem fazer aparentemente está sendo feito”, diz Eliseu Alves Waldman, epidemiologista da USP.  “A Itália conseguiu uma boa adesão, mas só quando chegou a um estado de crise absoluta. Precisamos da ajuda da população.”

Essa não foi a primeira nem será a última epidemia com que a civilização terá de lidar. Faz mais de 3 bilhões de anos que a vida na Terra é essencialmente microscópica – e apenas 300 mil anos que estamos por aqui. Eles habitam este planeta há 10 mil vezes mais tempo que nós. Somos descendentes de mamíferos que já eram infectados por vírus, que por sua vez descendem de répteis que já eram infectados por vírus, que em última instância descendem de bactérias que, até hoje, são massacradas por vírus.

Não podemos vencê-los – apenas lidar com eles. Como já dizia o Levítico (13:46): “Enquanto sofrer de uma doença contagiosa, a pessoa precisará morar sozinha, fora do acampamento.” É isso. A receita tem funcionado bem nesses últimos 3 mil anos. E o pessoal da Bíblia nem tinha Netflix para afastar o tédio.


O eterno retorno: Os vírus sempre estarão um passo à frente do sistema imunológico. A nós, resta lidar com as epidemias – que sempre vão voltar. (Otavio Silveira/Superinteressante

Texto e imagens reproduzidos do site: super.abril.com.br

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