Publicado originalmente no site da revista SUPERINTERESSANTE
Vírus: vida e obra do mais intrigante dos seres
O coronavírus é apenas o herdeiro de uma tradição: do herpes
à Covid-19, entenda como os vírus moldaram a vida na Terra e a história da
civilização.
Texto: Bruno Vaiano | Reportagem: Bruno Carbinatto e
Guilherme Eler | Ilustração: Otávio Silveira | Design: Carlos Hara
O Tierra é um programa de computador com 80 linhas de
código-fonte. É pouco: um app de celular pode alcançar 500 mil; a versão mais
recente do Photoshop tem 4,5 milhões. Esse software minúsculo foi criado em
1990, no PC do biólogo Thomas Ray da Universidade de Delaware, nos EUA. A única
função de Tierra é criar cópias de si mesmo. Essas cópias vão fazendo mais
cópias, até a memória do computador ficar lotada.
Às vezes, durante a clonagem, um dos “filhotes” tem uma
linha de código duplicada, alterada ou deletada aleatoriamente. A maior parte
dessas mutações impede o Tierra afetado de continuar a se reproduzir. Mas
algumas melhoram o desempenho, e ele passa a preencher o HD mais rápido. Isso é
seleção natural. Nesse experimento distópico, os Tierras são uma vida
artificial que evolui, no sentido darwiniano da coisa.
Alguns Tierras se tornam mais complexos e eficazes após
algumas gerações. Outros, porém, ficam mais simples. Vão abandonando linhas de
código, até não conseguirem mais se copiar sozinhos: as linhas que restam, por si
só, não contêm todas as instruções necessárias para gerar um conjunto igual de
linhas. A solução para esses Tierras preguiçosos é parasitar Tierras inocentes,
pegando linhas emprestadas para se reproduzir. Assim, às custas dos outros,
eles se multiplicam. O nome disso é vírus. De computador, nesse caso.
Há uns 3,5 bilhões de anos, algo parecido aconteceu na
Terra. Nessa época, os primeiros seres vivos, bactérias rudimentares, se
multiplicavam nos oceanos. Algumas se tornavam mais complexas: graças a uma
mexidinha no DNA aqui, outra ali, ganhavam genes novos e, com eles, habilidades
bioquímicas inéditas. Outras foram abandonando genes, até ficarem tão simples
que começaram a sequestrar o maquinário de bactérias normais para se
reproduzir. Essa é uma de várias hipóteses para a origem dos vírus: eles seriam
ex-bactérias que se tornaram cada vez mais rudimentares.
O vírus que está desenhado na capa desta edição parece vindo
da ficção científica, mas é das antigas. Se chama bacteriófago, ou seja: é um
especialista em atacar bactérias (fagós é “comer” em grego). Não existe outro
parasita tão letal na Terra, porque suas vítimas, até hoje, são as mais
numerosas. O número de bactérias no oceano tem 28 zeros. Isso significa que,
para cada estrela do Universo visível, há 10 milhões de bactérias na água. O
número de vírus que ganham a vida se aproveitando dessas bactérias tem 31
zeros, de modo que o número de infecções virais que ocorrem no oceano por
segundo tem 23 zeros. 40% do total de bactérias dos oceanos morrem por causa de
vírus a cada 24 horas. Para uma bactéria, todo dia é dia de pandemia.
A vida, é claro, se tornou mais complexa que um duelo entre
bactérias e vírus (ainda que eles continuem reinando absolutos sobre os
ecossistemas da Terra). Ao longo de bilhões de anos de história, as bactérias
uniram forças para formar seres multicelulares, como plantas, fungos e animais.
Os vírus foram atrás, sempre evoluindo para se aproveitar da complexidade
crescente. O que nos leva ao maior problema de saúde pública do século 21: o
coronavírus Sars-CoV-2, causador da doença Covid-19, que, até o fechamento
desta edição, havia causado 8,7 mil mortes. Nos próximos parágrafos, você lerá
um dossiê sobre os vírus: o que eles são, do que são feitos, como invadem
nossas células e como mudam nossas vidas desde que nossa espécie se entende por
gente. Começando pelo básico:
(Otavio Silveira/Superinteressante)
Como funciona um vírus
Um ser humano é construído por, no mínimo, 20 mil proteínas
diferentes (há quem fale em 92 mil). Existe a queratina dos seus cabelos; a
actina e miosina, que contraem seus músculos; a amilase, que começa a digestão
do açúcar ainda na sua boca; a insulina, que controla o acesso desse açúcar às
suas células… A lista é longa. Do mesmo jeito que as 400 mil palavras do
português são feitas com um alfabeto de apenas 26 letras, nossas 92 mil
proteínas são combinações diferentes de 20 pequenas moléculas chamadas
aminoácidos.
Durante a digestão, na acidez do estômago, as proteínas de
outros animais e plantas são quebradas em aminoácidos. Como palavras
desmontadas em uma sopa de letrinhas. Depois, células do corpo todo usam esses
aminoácidos como matéria-prima para montar suas próprias proteínas. Mas elas
precisam saber as sequências certas. Para tanto, usam um dicionário de
proteínas. O nome desse dicionário é DNA. Quando uma célula precisa de uma
proteína, uma molécula chamada RNA mensageiro vai até o núcleo, abre o DNA,
anota a receita e leva a anotação a uma estrutura chamada ribossomo, que monta
a proteína.
Todo vírus é feito essencialmente das mesmas coisas que
você: uma cápsula oca de proteínas e gorduras no interior da qual há um pedaço
curtinho de material genético – que contém as receitas. (Quando você usa álcool
gel ou sabão, destrói a cápsula do mesmo jeito que desmancha gordura de
hambúrguer nas suas mãos).
O problema é que, ao contrário de qualquer animal, planta ou
bactéria, os vírus não fabricam suas proteínas por conta própria. Eles não têm
a linha de montagem, o tal do ribossomo. O jeito é invadir um organismo – seja
uma bactéria, seja um Homo sapiens – e sequestrar os ribossomos, fazendo com
que eles fabriquem novas cápsulas virais em vez de algo útil para um humano,
como queratina ou amilase. É por isso que os vírus só se reproduzem dentro de
algum hospedeiro.
Para sequestrar ribossomos, primeiro é preciso penetrar em
uma célula, que é protegida por uma membrana. Cada vírus dá um jeito diferente
de atravessar a membrana, então vamos usar como exemplo a praga da vez: os
coronavírus – que atendem pela sigla CoV. A pandemia de Covid-19 é só a obra
mais recente dessa família. Além de outras epidemias respiratórias, como a
Sars, de 2002, e a Mers, de 2012, os coronavírus foram (e são) responsáveis por
resfriados comuns também – junto com 200 e tantos vírus de outros tipos. Das
sete linhagens conhecidas de CoV, quatro são quase inofensivas. Só causam
alguns espirros.
Corona, você já leu por aí, significa “coroa” em latim,
porque o vírus tem a aparência de uma bola com uma coroa de espinhos. Esses
espinhos, na verdade, não espetam. São só proteínas, que evoluíram para se
encaixar como chaves nas fechaduras que ficam na membrana. Feito o encaixe, é
só entrar.
Uma célula humana é algo realmente pequeno: você tem 37,2
trilhões delas, em geral tão minúsculas que no espaço de um milímetro cabem dez
enfileiradas. Para entrar em uma célula, portanto, os vírus precisam ser cerca
de cem vezes menores. Se um coronavírus particularmente gordo, com 160
nanômetros, fosse do tamanho de uma pessoa, a pessoa seria do tamanho da
distância entre o Brasil e o Japão – 17 mil km.
A Covid-19 (sigla para coronavirus disease 2019) começa
quando o novo vírus acessa o nariz, a boca ou os olhos – pegando carona nas
suas mãos ou suspenso no ar em gotículas de saliva após um espirro bem dado.
Ele se aloja em um cantinho estratégico, a parede por onde o muco escorre
garganta abaixo. Os espinhos dele são ótimos em invadir as células dessa
região. É na garganta que a maior parte dos casos de Covid-19 começa – e
termina, com o vírus eliminado pelo sistema imunológico. Os sintomas, nesses
casos, são leves: tosse seca para expulsar o invasor; febre baixa para matá-lo
de calor (às vezes, nesses casos de eliminação rápida, rola uma dorzinha na
cabeça ou na garganta).
Uma vez dentro da célula, o vírus começa a passar suas
próprias fitas de RNA mensageiro pelos ribossomos. As organelas não percebem
que a receita do invasor é uma cilada, e acabam gerando milhões de cópias das
proteínas usadas para montar cápsulas de coronavírus. As células se tornam
fábricas a serviço do inimigo.
No final, basta ao vírus colocar uma cópia do genoma dentro
de cada uma dessas cápsulas e voilà: um novo exército está pronto. O vírus da
Covid-19 não explode a célula para sair – como faz o ebola, por exemplo. Ele
vence pela exaustão: a célula se dedica tanto a produzir as proteínas do corona
que morre por não conseguir fabricar suas próprias proteínas.
20% dos casos de Covid-19 evoluem para um quadro mais
severo, em que o vírus desce para os pulmões. É que o sistema imunológico não
gosta nada disso. “Assim como em outras doenças causadas por vírus, os sintomas
vêm mais da resposta do corpo a ele que da atuação do vírus em si”, explica
Jean Pierre Peron, imunologista do Instituto de Ciências Biomédicas (ICB) da
USP.
E a resposta vem pesada. Os vasos sanguíneos do pulmão se
dilatam para que os glóbulos brancos cheguem mais rápido ao local da infecção.
Isso causa dor e inchaço. O campo de batalha fica congestionado de destroços:
células mortas no fogo cruzado se misturam às que já foram assassinadas pelo
vírus. Mesmo se o sistema imunológico der conta de exterminar logo o exército
de coronas, a gosma de células mortas que ficaram pode deixar lesões
permanentes.
Já se os seus anticorpos não derem conta, e o corona seguir
sua série de assassinatos, os alvéolos acabam entupidos. Aí complica de vez.
Isso impede a troca de gases com o ambiente. Se não houver ventilação
artificial, o paciente morre de insuficiência respiratória.
A classificação dos vírus
O vírus não faz isso porque é mau. Na verdade, ele não pode
ser mau ou bom, pois sequer é considerado vivo pela maioria dos biólogos. Vírus
não têm metabolismo, não comem, respiram ou excretam. Não se reproduzem
sozinhos – precisam dos hospedeiros –, e não se locomovem por conta própria. A
única razão da existência de um vírus é fazer mais de si mesmo. Ele é um
pedacinho de informação genética que se replica. A razão de sua existência,
diga-se, é a replicação. Os vírus se replicam simplesmente porque os que não se
replicavam bem deixaram de existir.
É difícil traçar o parentesco entre os mais de 5 mil vírus
conhecidos – sequer sabemos se eles têm todos a mesma origem. Embora alguns
possam ter regredido de bactérias, como mencionado no início do texto, outros
talvez descendam de pedacinhos de DNA que circulavam livremente entre bactérias
há bilhões de anos. O biólogo David Baltimore criou o sistema de classificação
mais aceito, que divide os vírus em sete tipos de acordo com as moléculas que
cada um usa para armazenar sua informação genética [veja o gráfico no final
desta seção, clique nele para ampliar].
Os vírus, ao contrário de nós, não dependem necessariamente
do DNA para guardar seu genoma. Eles podem usar o próprio RNA, que normalmente
é só um burro de carga, para aquela missão mais nobre de guardar as receitas de
proteína. Isso até facilita as coisas, pois permite sabotar o ribossomo direto,
sem ter que transcrever DNA em RNA antes.
O RNA é uma molécula bem frágil (a seleção natural não optou
pelo DNA à toa: se você vai salvar todas as informações sobre você mesmo em um
pen drive, é melhor usar um bom pen drive). “Frágil”, nesse caso, significa
sofrer mutações com mais frequência.
Esse defeito, porém, também é um trunfo: mutações frequentes
ajudam o vírus a se adaptar muito mais rápido, e superar as novidades que as
nossas células criam na corrida armamentista contra invasores. Não é figura de
linguagem: todos os anos lançamos uma nova vacina contra a gripe, e todos os
anos uma nova linhagem do vírus da gripe aprende a superá-la. E essa Guerra
Fria biológica nos acompanha há muito, muito tempo.
Errata: no gráfico abaixo, há uma troca entre as explicações
dos tipos 4 e 5. O RNA mensageiro é uma fita positiva. Portanto, o vírus tipo
4, de fita positiva, é o que gera o RNA mensageiro direto. Já o tipo 5, de fita
negativa, precisa primeiro convertê-la em positiva (isto é, “revelar a foto”).
Agradecemos a bióloga Talita Dellariva, especialista em herpesvírus, pela
correção.
(Otavio Silveira/Superinteressante)
Os vírus de estimação
Humano bom não é humano morto. Pelo menos, não na opinião do
vírus do herpes – talvez o mais comum e discreto dos que parasitam nossa
espécie. Ele vem em duas versões. A primeira, denominada HSV-1, é encontrada em
67% da população mundial e se manifesta de forma branda: durante as crises, que
duram no máximo dez dias, cachos de bolinhas com líquido brotam nos lábios do
infectado. Não há cura; mas também não há preocupação: elas vão embora
sozinhas, para talvez voltar meses ou anos depois. O HSV-2, por sua vez,
geralmente ataca os genitais, atinge uma em cada seis pessoas, e tem sintomas
mais incômodos.
Ninguém morre de herpes, e essa é a estratégia do vírus. Nas
palavras de James Lovelock, “Um vírus ineficaz mata seu hospedeiro, um vírus
eficiente fica com ele”. O HSV, com suas discretas perebas, pega carona em
beijos e ousadias por aí, garantindo o contágio. Ele quer seu hospedeiro feliz
e transante, e não internado no hospital.
A explicação do comportamento moderado do herpes encontra-se
em sua história: esse é um vírus antigo, de uma época em que não havia uma
enorme população de Homo sapiens – só alguns grupos de nômades caçadores aqui e
ali. Era essencial cuidar de seu humano de estimação, pois ele dificilmente
encontraria outro.
Herpes e Darwin: O herpes é tão antigo que já estava em
nossa linhagem há 8 milhões de anos – quando o ramo que daria origem à nossa
espécie se separou dos chimpanzés. (Otavio Silveira/Superinteressante)
É importante especificar o quão antigo é o HSV-1: o ancestral
comum a humanos e chimpanzés – isto é, o primata que deu origem às duas
espécies – já tinha herpes há 8 milhões de anos. Quando os descendentes desse
ancestral comum se dividiram entre humanos e chimpanzés, dois ramos do herpes
se formaram: um especialista em nós, outro, claro, em chimpanzés.
Uma vez estabelecida a linhagem humana, houve uma segunda
diferenciação: conforme os hominídeos começaram a caminhar eretos, apoiados em
só duas patas, seus genitais pararam de entrar em contato com a boca dos outros
o tempo todo (às vezes entram, claro, mas não andamos por aí de quatro
averiguando o traseiro alheio no escritório). Isso criou uma barreira
geográfica entre a boca e a genitália, e assim surgiram mais duas ramificações
do vírus de herpes: os tipos 1 e 2 de hoje.
Os biólogos têm os genomas desses vírus sequenciados, e
sabem aproximadamente a que taxa eles sofrem mutações. Dessa forma, é possível
calcular há quanto tempo nós nos separamos dos chimpanzés e nos tornamos
bípedes. Basta contar quantas diferenças (mutações) há entre os genomas dos
dois herpes: quanto maior a divergência, mais tempo se passou. Esse cálculo dá
8 milhões de anos. O incrível é que, quando a mesmíssima conta é feita usando
diretamente o DNA de humanos e chimpanzés, o resultado é idêntico.
A nossa história é a história de nossos parasitas. Mais que
isso: às vezes, nossa história se mistura com a deles. Os retrovírus, como o
HIV, usam um método especialmente engenhoso para controlar a célula invadida:
em vez de passar fitas de RNA nos ribossomos, eles instalam pedaços de DNA no
genoma do hospedeiro. Sim: o bichinho faz com que as receitas de proteína se
tornem parte de você.
Se um retrovírus infecta as células germinativas de um ser
humano – isto é, as células que dão origem a óvulos e espermatozoides –, então
ele tem uma chance razoável de alterar para sempre o DNA dos filhos desse
humano. Afinal, se o óvulo fecundado que dará origem ao feto estiver carregando
um gene do vírus, todas as células do bebê terão esse gene ao final da gestação.
Parece uma possibilidade remota, mas é comum: algo entre 5%
e 8% do genoma humano consiste em pedaços de retrovírus que se fundiram com
nossos antepassados ao longo da evolução. Alguns desses “genes virais”,
inclusive, foram reaproveitados em funções úteis: uma proteína que servia de
cola para um vírus desconhecido aderir à parede das células é usada,
atualmente, para aumentar a aderência entre as células que formam a placenta.
Ou seja: ela torna a gestação de bebês mais eficiente.
Os vírus e a história
Essa é a frase mais repetida da história da SUPER: “Há cerca
de 12 mil anos, o Homo sapiens passou a praticar a agricultura e a pecuária”.
Mas vamos repeti-la, pois é essencial para esta história também. Essa produção
de alimento em larga escala permitiu a formação de grandes grupamentos
sedentários – os primeiros vilarejos densamente povoados. E isso, por sua vez,
permitiu a evolução de vírus extraletais: com uma ampla oferta de humanos, dá
para matar o seu e pular direto para o próximo.
Outro problema é a disseminação de zoonoses: doenças que
originalmente atacavam animais, mas depois sofreram mutações que as permitem
infectar o sapiens. De 1.415 patógenos conhecidos, 61% têm origem em outras
espécies. Tais micróbios deixam 2,5 bilhões de pessoas doentes e matam 2,7
milhões todos os anos. Estima-se que uma nova doença animal capaz de infectar
pessoas é descoberta a cada quatro meses.
O novo coronavírus é uma dessas doenças. No Sudeste
Asiático, os wet markets (ao pé da letra, “mercados úmidos”) vendem a carne de
animais silvestres exóticos que são mantidos em jaulas apertadas e então mortos
no balcão. As condições sanitárias fazem um boteco brasileiro parecer piso de
hospital. Já está confirmado que o primeiro foco de disseminação do coronavírus
foi o mercado de Huanan, em Wuhan.
Muitos animais vendidos nesses mercados, antes da captura,
contraíram doenças em seu habitat, geralmente após serem mordidos por morcegos
ou entrarem em contato com o cocô desses mamíferos (só a minoria dos morcegos,
três espécies de mil, bebe sangue). Os pequenos Dráculas são vetores
exemplares: carregam no mínimo 200 vírus, 60 dos quais têm potencial para
contaminar humanos.
No ambiente estressante do mercado, com o facão no pescoço,
a imunidade dos animais capturados cai e as doenças que eles pegaram de
morcegos se manifestam. Daí até um açougueiro com as mãos sujas de sangue coçar
o olho, é um pulinho. Diante de uma oferta tão pujante de vírus, frequentemente
um deles tem as mutações necessárias para infectar a nossa espécie também.
Presente de grego: Animais domésticos, como os porcos,
transmitem novos vírus da gripe, enquanto morcegos são bombas: carregam mais de
200 tipos de vírus, 60 dos quais podem infectar humanos. Eles chegam a nós por
intermédio de bichos exóticos, como pangolins. (Otavio
Silveira/Superinteressante)
Quando a população doente é grande, o vírus se beneficia da
violência com que ataca humanos. Vômito, diarreia e espirros são um Uber para
os patógenos: ferramentas por meio das quais eles pulam de uma pessoa para
outra. É por isso que eles se especializaram nesses sintomas.
O acesso prioritário a vírus e bactérias letais, de início,
foi péssimo para quem deixou os hábitos nômades e passou a viver em vilarejos.
A qualidade de vida nas primeiras comunidades sedentárias era inferior à dos
caçadores-coletores. Os fazendeiros ficavam doentes com mais frequência e
tinham a alimentação restrita aos pouquíssimos vegetais e bichos que já haviam
sido domesticados. Em longo prazo, porém, tais populações se tornaram imunes
aos germes barra pesada que adquiriam – e passaram a usá-los como armas
involuntárias (ou, às vezes, deliberadas) para dizimar oponentes.
Foi o que aconteceu durante a colonização da América Latina
pelos espanhóis: as civilizações Asteca e Inca foram dizimadas pela varíola
trazida da Europa – e seus sistemas políticos foram desestabilizados por
disputas de poder quando os governantes morreram. Com o tempo, esses povos
desenvolveram imunidade. Os corpos dos sobreviventes, depois de uma primeira
infecção, aprenderam a matar o vírus da varíola Mas era tarde: já estavam
completamente dominados pelos europeus.
Colonização biológica: povos que adquirem vírus letais de
seus animais domésticos podem usá-los para infectar inimigos. Foi o que
aconteceu na América em 1500 – quando os nativos foram massacrados pelo sarampo
dos europeus. (Otavio Silveira/Superinteressante)
É claro que, para alguns vírus, um round de imunização não
basta. Vírus como o da gripe, por serem feitos de RNA, passam por mutações tão
rápido que aprendem a burlar nosso sistema imunológico, como já dissemos aqui.
E, se essa mutação aumentar a letalidade de uma gripe, a coisa vira uma bomba
atômica. A gripe mais cruel da história se deu em 1918, no final da 1a Guerra
Mundial, quando uma estirpe bombada do influenza H1N1 (sim, o mesmo que causou
a epidemia de 2011) matou algo entre 20 e 50 milhões de pessoas. E ela tem
algumas lições para nos ensinar.
Como as epidemias se espalham
Dois números são especialmente importantes para entender
epidemias violentas. Um é a letalidade, isto é: a porcentagem de pessoas
infectadas que morrem. Outro é o R0 (pronuncia-se “érre zero”), que representa
a facilidade com que o vírus se espalha. Por exemplo: se o R0 de uma doença é
2, cada doente passa o vírus para, em média, outras duas pessoas.
O influenza da gripe espanhola não era tão letal assim: em
média, “só” 2,5% dos doentes morriam. O problema é que ele infectou 500 milhões
de pessoas (27% da população mundial da época, de 1,8 bilhão de pessoas). No
fim, no mínimo 20 milhões morreram.
O valor R0 da gripe espanhola ficava entre 1,2 e 3 em
ambientes abertos e 2,1 e 7,5 em ambientes confinados. A margem de erro é
grande porque é impossível determinar, só com documentação de papel, as
características de uma epidemia que ocorreu um século atrás.
Mas o dado é claro: na pior das hipóteses, um infectado
trancado em um navio ou hospital era capaz de deixar outras sete pessoas
doentes. E era fácil cumprir tais condições. O fim da 1a Guerra gerou um grau
inédito de circulação e confinamento de pessoas. Os militares sobreviventes,
desnutridos e fumantes, voltavam para casa em navios e trens lotados, com o
sistema imunológico enfraquecido. A mortalidade masculina foi tão alta que a
força de trabalho feminina na indústria americana aumentou 25% por simples
falta de braço – dando um gás aos movimentos pelos direitos das mulheres.
No gráfico acima, veja as epidemias mais famosas da
história em ordem cronológica – e quanto cada uma matou. A Covid-19, no pior
dos cenários, pode ser tão grave quanto a gripe espanhola. Mas nada que se
compare à destruição causada pela varíola.
Conforme uma doença avança, mais pessoas se tornam imunes a
ela. Chega uma hora em que um infectado não consegue passar seu vírus para
frente, porque todas as pessoas com que ela entra em contato já foram expostas
à doença e estão imunes. Isso impede que o vírus pule de corpo em corpo até
alcançar locais onde a infecção ainda não havia chegado. Ele para de colonizar
novos territórios. E deixa de existir.
Essa é a progressão natural de toda epidemia, e o motivo
pelo qual elas sempre terminam. Essa é também a lógica por trás da chamada
“imunização de rebanho”, propiciada pelas vacinas: o sarampo, que possui R0
entre 12 e 18, se espalha em um ritmo assustador. Para que a vacinação seja
eficaz, é importante derrubar o R0 para 3,5, o que significa manter no mínimo
oito em cada dez cidadãos imunizados. Quem não vacina os filhos põe os filhos
dos outros em risco.
Agora, vamos ao vírus da vez. A mortalidade da Covid-19,
segundo a última atualização divulgada pela OMS antes do fechamento desta
edição, é de 3,7% (com variações etárias, é claro: 0,2% para quem tem de 10 a
39 anos, 15% para quem tem mais de 80). Já seu R0 é 2,2. Mas há um problema:
esses números consideram apenas os pacientes que foram ao hospital com sintomas
preocupantes. Como 80% dos casos de Covid-19 apresentam sintomas leves (ou
inexistentes), e não há testes para todo mundo, a maioria dos infectados fica
de fora da contagem. E aí o dado da OMS fica exagerado.
Um jeito eficaz de aumentar a precisão dessas cifras é
testar absolutamente todas as pessoas de um local em que todo mundo tenha sido
exposto ao vírus. É uma exigência exótica para um experimento – nenhum
cientista trancaria milhares de cobaias humanas num galpão para depois
infectá-las de propósito.
Mas, por azar, algo parecido aconteceu: o corona se espalhou
no navio de cruzeiro Diamond Princess, com 3.711 ocupantes entre passageiros e
tripulantes, que encontra-se ancorado no porto de Yokohama, no Japão, em
quarentena. A embarcação virou um laboratório involuntário com cobaias humanas.
Até a data de fechamento desta edição, eram 707 infectados e 7 vítimas fatais,
o que dá uma mortalidade de aproximadamente 1%. Não por coincidência, é o mesmo
número fornecido pela Coreia do Sul, onde testes estão sendo realizados em
massa. O vírus, portanto, talvez seja menos letal do que se pensava.
Mas isso não é consolo caso ele se espalhe demais: o
infectologista chinês Gabriel Leung, especialista em saúde pública da
Universidade de Hong Kong, liderou os esforços de combate às Sars em 2003 (que
teve um desfecho comparativamente leve, com 8 mil infectados e 800 mortos). Ele
conhece bem os coronavírus, e calcula que até 60% da população mundial pode
acabar contaminada. Se isso acontecer e o índice de fatalidades for mesmo de
1%, o vírus ainda matará 45 milhões de pessoas. Um número bem próximo dos 50
milhões da gripe espanhola.
Por isso mesmo é importante ficar em casa. O principal
objetivo do isolamento é fazer com que as pessoas não peguem a Covid-19 todas
ao mesmo tempo, sobrecarregando os sistemas de saúde – uma ideia representada
no gráfico aqui embaixo e, felizmente, reproduzida em todos os lugares nas
últimas semanas. Caso tal sobrecarga aconteça, a taxa pode ser bem maior que
1%. E o total de mortos deixaria a gripe espanhola para trás.
O gráfico acima resume o objetivo das quarentenas: se as
pessoas não ficarem doentes todas ao mesmo tempo, os hospitais talvez deem
conta de atender todo mundo.
Pessoas em estado crítico podem ser salvas por máquinas de
ventilação mecânica, que compensam a insuficiência respiratória e dão tempo
extra para que o sistema imunológico lute contra o vírus – até vencê-lo. Porém,
se não há equipamento para todos, é preciso escolher quem vive. Esse é o
problema na Itália. Como as quarentenas demoraram para começar, a Covid-19 se
espalhou rápido e a mortalidade bateu avassaladores 8,3% em meados de março. No
dia 16 de março, o país anunciou que pessoas acima de 80 anos não terão mais
direito a respiradores em caso de superlotação – o propósito é guardá-los para
os que tenham mais chances de sobreviver à infecção.
Para piorar, um estudo coordenado pela Universidade
Columbia, em Nova York, e publicado no periódico Science em 16 de março,
estimou que dois terços das infecções de coronavírus são culpa de
assintomáticos: pessoas que contraíram o vírus, mas não foram afetadas, saem
para trabalhar ou estudar normalmente e acabam espalhando ele por aí. Esse,
aliás, é um argumento a favor das máscaras: como nem todo mundo fará um teste
para saber se está ou não infectado, posto que testes são um recurso caro e
escasso, é melhor proteger de uma vez os outros do perigo que você mesmo pode
representar.
Neste gráfico, o eixo vertical marca a porcentagem de
infectados por uma doença que morrem, em média. O número também está entre
parênteses ao lado do nome da doença. Já o eixo horizontal mostra o valor R0
(“érre zero”), isto é: o número de pessoas que são infectadas, em média, por
cada indivíduo que tem o vírus.
Os dados do coronavírus ainda são incertos: a mortalidade
com certeza é próxima de 1%, e o R0 provavelmente é maior que 2,2, que é o
valor oficial atual.
Fontes: Organização Mundial da Saúde (OMS), Centro de Controle
e Prevenção de Doenças dos EUA.
*A gripe aviária tem R0 = 0 porque é transmitida apenas de
aves para humanos, e não entre pessoas.
As vacinas
Além das quarentenas generalizadas, a melhor maneira de
combater uma pandemia viral é vacinar a população. Na ausência de bolas de
cristal, porém, demora produzir uma vacina para uma doença até então
desconhecida.
Pelo menos oito vacinas contra o novo coronavírus estão
saindo a toque de caixa, a maioria em empresas privadas. Vacinas, assim como
remédios, são submetidas a um processo regulatório severo que garante sua
segurança e eficácia. Antes de chegar ao público, elas passam por testes
pré-clínicos com animais e três fases de testes clínicos com voluntários humanos
– se qualquer coisa der errado, o trabalho recomeça do zero.
Assim, há o risco de que nenhum dos concorrentes complete o
trabalho a tempo (ainda que essa seja uma precaução importantíssima para evitar
epidemias futuras). “Pode acontecer algo parecido com o caso do ebola”, diz
Helder Nakaya, da Faculdade de Ciências Farmacêuticas da USP. “As pessoas
correram para criar uma vacina, mas, quando os ensaios clínicos estavam na fase
3 [o teste final, com milhares de voluntários], já não havia mais uma epidemia
para combater.”
Sabe-se que a Johnson & Johnson está estudando uma
vacina que consiste em injetar o vírus inteiro em uma versão inativa, e a
Clover Biopharmaceuticals, em parceria com a Universidade de Queensland, na
Austrália, aposta em uma técnica que envolve exibir uma proteína do vírus ao
sistema imunológico, de maneira que os glóbulos brancos salvem a impressão
digital da ameaça. Essas são duas abordagens clássicas, usadas em vacinas desde
o século 18.
Uma outra empresa, chamada Moderna Therapeutics, aposta em
uma técnica mais inovadora (e já até pulou os testes preliminares em animais
para vencer a concorrência, uma infração ética que incomodou os profissionais
da saúde). A ideia deles é injetar pedacinhos de RNA mensageiro do vírus nas
pessoas, simulando aquele momento do sequestro dos ribossomos. As células do
vacinado, então, passariam a fabricar uma amostra de proteína viral inofensiva,
que então seria identificada e devidamente arquivada pelo sistema imunológico.
Quando o vírus real entrasse no corpo, encontraria todo um batalhão de
linfócitos prontos para massacrá-lo.
Como é impossível prever quando a vacina estará disponível,
a melhor arma contra o coronavírus ainda somos nós mesmos. “O que as
autoridades brasileiras podem fazer aparentemente está sendo feito”, diz Eliseu
Alves Waldman, epidemiologista da USP.
“A Itália conseguiu uma boa adesão, mas só quando chegou a um estado de
crise absoluta. Precisamos da ajuda da população.”
Essa não foi a primeira nem será a última epidemia com que a
civilização terá de lidar. Faz mais de 3 bilhões de anos que a vida na Terra é
essencialmente microscópica – e apenas 300 mil anos que estamos por aqui. Eles
habitam este planeta há 10 mil vezes mais tempo que nós. Somos descendentes de
mamíferos que já eram infectados por vírus, que por sua vez descendem de
répteis que já eram infectados por vírus, que em última instância descendem de
bactérias que, até hoje, são massacradas por vírus.
Não podemos vencê-los – apenas lidar com eles. Como já dizia
o Levítico (13:46): “Enquanto sofrer de uma doença contagiosa, a pessoa
precisará morar sozinha, fora do acampamento.” É isso. A receita tem funcionado
bem nesses últimos 3 mil anos. E o pessoal da Bíblia nem tinha Netflix para
afastar o tédio.
O eterno retorno: Os vírus sempre estarão um
passo à frente do sistema imunológico. A nós, resta lidar com as epidemias –
que sempre vão voltar. (Otavio Silveira/Superinteressante
Texto e imagens reproduzidos do site: super.abril.com.br
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