Recriação artística do voo da sonda 'New Horizons'
sobre
Arrokoth. (NASA)
Publicado originalmente no site do jornal EL PAÍS BRASIL, em 14 de fevereiro de 2020
Sonda revela o mundo mais distante e antigo do Sistema Solar
‘New Horizons’ fotografa Arrokoth, no cinturão de Kuiper, a
6 bilhões de quilômetros da Terra. Descoberta pode ser caminho para encontrar o
nono planeta
Por Nuño Domínguez
Em 1º de janeiro de 2019 ocorreu um momento histórico que
ninguém pôde assistir. A sonda robótica New Horizons sobrevoou um corpo gélido
e totalmente desconhecido a mais de 6 bilhões de quilômetros da Terra. É o
objeto celeste mais antigo e distante jamais visitado por uma nave.
Na quinta-feira foram publicados todos os dados do sobrevoo
recolhidos pela sonda da NASA. Em conjunto oferecem a qualquer terrestre a
sensação de visitar —ainda que seja com a imaginação— um lugar do Sistema Solar
ao que nunca poderia chegar de outra forma.
Ultima Thule, agora rebatizado de Arrokoth (que significa
céu na língua dos indígenas norte-americanos), é um pequeno mundo de 36
quilômetros de largura formado por duas grandes esferas achatadas unidas por um
estreito pescoço. É um dos milhões de objetos que formam o cinturão de Kuiper,
um disco de escombros de tamanhos muito diferentes —Plutão é talvez o mais
famoso— que se estende além da órbita de Netuno por centenas de milhões de quilômetros,
aos confins do Sistema Solar.
A temperatura solar no verão em Arrokoth é de 200 graus
abaixo de zero pela pouca luz solar que chega, equiparável à de um quarto
sombrio, diz John Spencer, um dos líderes científicos da missão. “A superfície
desse mundo é muito suave e de cor vermelho escuro. Existem pouquíssimas
colinas baixas e bem poucas crateras de impacto. A força da gravidade é tão
baixa, 1.000 vezes menor do que na Terra, que se você saltasse com força
poderia voar da superfície e sair ao espaço”, frisa Spencer.
A New Horizons passou a 3.500 quilômetros de distância da
superfície de Arrokoth, mas suas câmeras puderam fotografá-lo detalhadamente,
de modo que cada pixel representa 30 metros.
Os resultados científicos dessa parte da missão, publicados
na quinta-feira na prestigiosa revista Science, mostram que Arrokoth se formou
há mais de 4 bilhões de anos, quando o Sistema Solar ainda estava em
desenvolvimento ao redor de um Sol muito jovem. Julgando pelas poucas crateras
de impacto que existem em sua superfície, os especialistas acham que o objeto
permaneceu quase intacto desde então e, portanto, pode explicar muito bem como
foram os primeiros passos à formação de planetesimais, pequenas massas de
poeira e terra que, ao se aglutinar, acabaram formando todos os planetas do
Sistema Solar.
Os cientistas da missão afirmam que objetos como esse
começaram a se formar pela “coagulação” de pequeníssimos fragmentos menores do
que feijões que orbitavam na nuvem de gás e poeira que circundava o Sol. Os
coágulos nessa região mais externa da nuvem foram se unindo até formar dois
objetos quilométricos que por fim se encontraram a uma velocidade não muito
superior à de uma pessoa caminhando, o que acabou por formar esse corpo com
suas duas características protuberâncias com formato de esfera amassada.
Nessa desconhecida região do sistema solar pode se esconder
uma descoberta sem precedentes: o nono planeta do sistema solar que os
astrônomos procuram há anos e de cuja existência só existem provas indiretas
“Isso nos dá uma visão muito mais clara de como se formaram
todos os planetas, incluindo a Terra”, diz Spencer. “Essa fusão delicada
sustenta nossa ideia de que os planetesimais se formaram pelo colapso
gravitacional de pequenas nuvens de poeira. As colisões eram tão suaves que
permitiram que diferentes objetos que orbitavam a pouca distância se fundissem,
diferentemente da colisão de objetos mais distantes por choques mais
violentos”, acrescenta.
Uma vez formados os planetas, o Sistema Solar jovem viveu uma
etapa de enorme violência. Os planetas gigantes, que haviam se formado mais
próximos ao Sol, migraram e levaram consigo uma enorme quantidade de objetos
menores. No cinturão de Kuiper há muitos desse tipo.
“Hoje em dia se sabe que todos os planetas migraram, em
maior ou menor medida, uns um pouco para dentro e outros para fora na última
etapa de formação do Sistema Solar”, diz José Luis Ortiz, do Instituto de
Astrofísica da Andaluzia. “Netuno migrou para fora uma distância seis vezes
maior do que a da Terra ao Sol. Existiu, acredita-se, um período de grande
instabilidade dinâmica que produziu uma rápida migração planetária e um abrupto
bombardeio de planetesimais ao interior e ejeção ao exterior. Nesse processo,
grande quantidade de planetesimais ricos em água e compostos orgânicos podem
ter se chocado com a Terra e talvez favorecido a formação de vida, mas isso é
muito especulativo”, afirma.
Os resultados dos estudos mostram que Arrokoth é, por outro
lado, um objeto “clássico”, ou seja, que tem uma órbita muito circular e se
formou justamente nesse ponto da periferia do Sistema Solar sem ser arrastado
por nenhum planeta, o que aumenta seu valor como cápsula do tempo quase intacta
das origens do Sistema Solar.
Julgando pelas poucas crateras de impacto que existem em sua
superfície, os especialistas acham que o objeto permaneceu quase intacto desde
então e, portanto, pode explicar muito bem como foram os primeiros passos à
formação de planetesimais
Outro dos estudos se centra na intensa cor vermelha de Arrokoth,
que indica que contém compostos orgânicos, entre eles metanol, um tipo de
álcool. “Sua formação se deve ao impacto dos raios cósmicos e à radiação
ultravioleta em compostos orgânicos”, afirma Silvia Protopapa, pesquisadora que
faz parte da missão da New Horizons. Não foi encontrado gelo de água —de metano
sim—, mas é possível que no passado tenha existido. Uma das explicações para a
presença de metanol é que seja produto da decomposição de gelo de água e de
metano pelo impacto da radiação. De qualquer modo, diz Protopapa, a presença de
compostos orgânicos não basta para sugerir a existência de vida. Arrokoth é
simplesmente frio demais para que ela possa surgir.
Nesse momento a New Horizons continua cruzando o cinturão de
Kuiper, onde observou mais de 20 objetos desde 2015, diz Spencer. “Todos eles
foram vistos a uma distância de 10 milhões de quilômetros, de modo que são
apenas pontos de luz para suas câmeras. Servem, entretanto, para saber em que
sentido rotacionam, se têm luas e para entender melhor o quão comuns são nessa
região os objetos como Arrokoth. Continuaremos observando objetos como esses
durante vários anos até deixarmos o cinturão e nos aproximarmos da fronteira do
Sistema Solar, onde começa o espaço interestelar. A nave tem energia suficiente
para continuar funcionando durante a próxima década, de modo que ainda
esperamos muitas descobertas”, frisa.
O geólogo planetário David Jewitt, da Universidade da
Califórnia, opina que deveriam ser planejadas novas missões não para atravessar
o cinturão de Kuiper, e sim para ficar nele explorando toda sua variedade de
corpos. Nessa desconhecida região do Sistema Solar pode se esconder uma
descoberta sem precedentes: o nono planeta do Sistema Solar que os astrônomos
procuram há anos e de cuja existência só existem provas indiretas, por seus
possíveis efeitos gravitacionais em outros corpos. Jewitt acha que vale a pena
investir em missões projetadas para orbitar planetas anões dessa região como
Plutão e Eris, e até construir naves capazes de “saltar de um ao outro”, como
fez a sonda Dawn, que viajou de Ceres a Vesta, dois corpos do cinturão de
asteroides, que se entende entre Marte e Júpiter. A energia solar é tão fraca e
as distâncias entre corpos tão imensas que provavelmente serão necessários
motores nucleares, afirma. “Tecnologicamente, provavelmente poderíamos fazê-lo.
Só nos falta visão científica e compromisso político para que essa missão possa
se tornar realidade”, escreve.
Texto e imagem reproduzidos do site: brasil.elpais.com
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